Erika Maria Gonçalves Campana
Cardiologista Especialista SBC/AMB
Mestre e Doutora em Medicina pela UERJ
Presidente do DHA/Socerj 2020/21 e Diretora do DHA/SBC 2020/21
Responsável pelo Modulo de Hipertensão no Curso Intensivo de Revisão em Cardiologia Clínica (CIRCC)
A interface entre hipertensão arterial e a Covid-19, a propósito de dois
artigos
Estamos vivendo um momento de muitos desafios na medicina, e em
particular na cardiologia nestes tempos de pandemia da Covid 19. Particularmente
duas perguntas continuam a ser feitas, por nós cardiologistas, após quase um ano
de evolução desta doença:
1) A hipertensão arterial (HAS) é fator de risco para COVID-19, ou há apenas
relação espúria entre estas duas condições clínicas?
2) O uso de inibidores do sistema renina angiotensina aldosterona (iSRAA) aumenta
a ocorrência de casos graves da Covid-19?
Ao longo do último ano, acumulamos conhecimento sobre a fisiopatologia
desta doença e alguns conceitos já estão muito bem sedimentados:
– Os Fatores de risco para COVID-19 grave são: Sexo masculino; idade, HAS,
diabetes melitus, obesidade e doença cardiovascular pré-existente;
– A HAS é uma condição clinica que cursa com status inflamatório subclínico
sistêmico, esta situação PODERIA predispor os pacientes hipertensos a uma
resposta inflamatória exacerbada durante a infecção pelo SARS-CoV-2 e
consequentemente a evolução para uma doença mais grave;
– O SARS-CoV-2 usa o receptor da ECA2 para fixação e penetração nas células
pulmonares; a infecção pelo SARS-CoV-2 aumenta a expressão do receptor de
ECA2, independente da presença ou não de HAS;
– Estudos em animais demonstram que os inibidores da ECA (IECA) e os
bloqueadores do receptor AT1 da angiotensina (BRA) podem promover feedback
positivo para expressão do receptor da ECA2;
– Os estudos clínicos até o momento publicados como o de Lee e colaboradores,
mostram que o tratamento com iSRAA não altera a expressão do receptor de ECA2,
e, portanto, não predispõe os pacientes hipertensos tratados com iSRAA a mais
infecção por SARS-CoV-2;
– Hoje sabemos que a resposta imunológica ao SARS-CoV-2 tem duas fases:
a) Resposta antiviral intrínseca: resposta inicial, que desempenha papel
importante no controle da replicação viral. Mutações de inativação nesta resposta
intrínseca estão associados a depuração viral lenificada e cursos clínicos mais
graves!
b) Resposta extrínseca tardia: ocorre nos pacientes em que a resposta antiviral
intrínseca inicial é anormal e há persistência viral na circulação. Nestes casos,
ocorre uma resposta inflamatória exacerbada com ativação de citocinas
inflamatórias e quadros clínicos graves.
Entretanto, do ponto de vista da pratica de consultório, o que nos interessa é
saber qual o risco associado ao paciente hipertenso, e qual o papel dos iSRAA
neste contexto. Dois artigos muito interessantes foram publicados e nos ajudam a
entender esta inter-relação e a tomar decisões sobre a conduta frente aos nossos
pacientes.
No Hypertension, foi publicado o resultado de um estudo de coorte
observacional, envolvendo 2 milhões de participantes. Composto de três coortes de
hipertensos (idades entre 18 a 80 anos) em tratamento com uso de IECA (n =
566023), ou BRA (n = 958227) ou bloqueadores dos canais de cálcio (BCC) (n =
358.306), pertencentes ao banco de dados do Seguro Nacional de Saúde da
França. Os participantes foram acompanhados de 15 de fevereiro de 2020 a 7 de
junho de 2020. Foram excluídos pacientes com histórico de diabetes, doença
cardiovascular, insuficiência renal crônica ou doença respiratória crônica durante os
5 anos anteriores.
Entre os participantes, 2338 foram hospitalizados e 526 morreram ou foram
intubados para Covid-19. O risco de hospitalização por Covid-19 foi menor entre
os usuários de drogas iSRAA (taxa de risco: 0,74; IC de 95%, 0,65-0,83) em
comparação com os usuários de BCC (taxa de risco: 0,84; IC de 95% 0,76-0,93).
Igualmente, houve um menor risco de intubação / morte por Covid-19, entre
usuários de iSRAA (taxa de risco: 0,66; IC de 95%, 0,51-0,84) em comparação com
usuários de BCC (taxa de risco: 0,79; IC de 95%, 0,64-0,98). E adicionalmente o
risco de hospitalização (taxa de risco: 0,87; IC de 95%, 0,79-0,96) ou intubação /
morte (taxa de risco: 0,83; IC de 95%, 0,67-1,03), foi ainda menor entre os usuários
de IECA em comparação com os usuários de BRA. Vale ressaltar que entre os
IECAs, o perindopril foi prescrito em 34% dos pacientes.
O artigo publicado na Nature Biotechnology, envolveu duas coortes
prospectivas e tinha como objetivo avaliar o efeito de doenças cardiovasculares
coexistentes, em particular da HAS e o tratamento anti-hipertensivo, na patogenia
da Covid-19 e na depuração viral do SARS-Cov-2. Os autores combinaram dados
clínicos (n = 144) e dados de sequenciamento de células únicas de amostras de
vias aéreas (n = 48) com experimentos in vitro. Os principais resultados encontrados
foram:
– Analise multivariada para fatores de confusão (idade, sexo, IMC, co-tratamento
com fármacos cardiovasculares como estatinas e betabloqueadores) = Risco de
desenvolver covid-19 grave em pacientes hipertensos (com ou sem doença
cardiovascular associada) => RR = 4,28 (IC95%: 1,60 a 11,46; p=0,028)
– Pacientes Hipertensos NÃO usuários de iSRAA tinham um risco aumentado em
comparação com os que usavam iSRAA para tratamento da HAS (RR = 8,17;
IC95%: 1,65 a 40,52; p= 0,009)
– Analise de regressão logística: Não houve aumento significativo no risco de
evolução para Covid-19 grave em pacientes tratados com IECA na comparação
com pacientes NÃO hipertensos. Já os pacientes tratados com BRA ainda tinham
um risco aumentado para Covid-19 grave em comparação com pacientes NÃO
hipertensos (RR=4,14; IC95%: 1,01 A 17,04; p=0,044). O tratamento com IECA
ABOLIU quase completamente o risco adicional relacionado a HAS, enquanto o
tratamento com BRA APENAS REDUZIU o risco!
– O tratamento com IECA não alterou a depuração do vírus, ela foi semelhante a
dos pacientes NÃO hipertensos. Já o tratamento com BRA foi associado ATRASO
na eliminação do vírus.
– O tratamento com IECA resultou em feedback positivo dos genes que regulam
negativamente a resposta do sistema imunológico ao vírus. Entretanto, o tratamento
com BRA foi associado a indução de genes envolvidos em quimiotaxia e
resposta inflamatória das células secretoras. Desta forma, o tratamento com IECA,
mas não com BRA, foi associado a uma forte resposta inflamatória intrínseca
inicial. Esta AUSÊNCIA de resposta intrínseca inicial observada nos pacientes
tratados com BRA, pode explicar a depuração viral lenificada que observamos
nos pacientes tratados com BRA e consequentemente a MENOR proteção contra a
evolução para quadros graves de Covid-19 observada com os BRAs.
Estas evidencias sugerem que, entre pacientes hipertensos, o uso de iSRAA
esta negativamente associado ao risco de Covid-19 grave, e associações
protetoras mais fortes foram observadas para os IECAs do que para os BRAs,
sugerindo um potencial efeito protetor dos iSRAA, notadamente os IECA em
pacientes hipertensos.
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