Champanhe, o estilo borbulhante de viver

Não existe qualquer registro histórico digno de confiança que confirme ter sido Dom Pérignon o criador do champanhe. Aqui, mais uma vez, a lenda é mais importante que a história – os especialistas em marketing que o digam. É verdade que, na condição de tesoureiro e responsável pela adega da abadia de Saint-Pierre de Hauvillers durante quase meio século (1668 a 1715, ano de sua morte), ele fez inúmeras experiências com vinhos, incluindo os do tipo espumante, que logo fariam a glória da região de Champagne. Mas o fato é que Dom Pérignon ficou indissoluvelmente associado ao famoso vinho, tanto que empresta seu nome à marca de prestígio da Maison Moët & Chandon, a maior empresa do ramo, responsável pela produção anual de cerca de 22 milhões de garrafas de champanhe.

Na verdade, o que acontecia na época – e que levou à descoberta do champanhe – é facilmente explicável tecnicamente. A Champagne é uma das regiões vitícolas situada mais ao norte (paralelo 49º). Como a colheita da uva é geralmente feita em outubro, a fermentação era interrompida no inverno, antes de estar completamente terminada. Uma vez engarrafado o vinho, com os primeiros calores da primavera a fermentação recomeçava no interior da garrafa. O gás carbônico assim produzido ficava aprisionado na garrafa, liberando-se em forma de espuma quando era aberta. Isso quando a garrafa não explodia devido à enorme pressão interna (entre cinco e seis atmosferas, o equivalente a quase três vezes a pressão de um pneu de caminhão).

Teria sido justamente a explosão de algumas garrafas que originou a lenda a respeito da euforia de Dom Pérignon ao experimentar aquele “líquido espumante”. Ao provar o conteúdo de uma garrafa, o monge teria gritado, maravilhado: “Corram, venham ver, estou bebendo estrelas.” O problema só seria resolvido com a adoção da garrafa de vidro forte, criada pelos ingleses, no final do século XVII.

É exatamente a espuma abundante, produto da segunda fermentação, que faz do champanhe um vinho diferente de todos os demais. O processo de elaboração da bebida começa com a produção de um vinho seco, o chamado “vinho base”. Para que ele sofra uma segunda fermentação, é acrescido de uma mistura de açúcar com leveduras selecionadas, conhecida como liqueur de tirage. A fermentação vai ocorrer dentro da garrafa, caracterizando assim o método champenoise. No método Charmat, criação do engenheiro francês Eugene Charmat, em 1910, a segunda fermentação, com a consequente tomada de espuma, acontece num grande recipiente e só depois o líquido é engarrafado. É importante lembrar que o champenoise– em outros países conhecido como método clássico ou método tradicional – é obrigatório na região de Champagne. Obrigatório, mas não exclusivo de lá: o Brasil, por exemplo, pratica os dois métodos: champenoise e Charmat.

No método tradicional, depois da mistura do licor de tiragem, as garrafas são dispostas horizontalmente em pilhas (“sur lattes”) nas caves subterrâneas, onde a temperatura média é constante, em torno de 10-11ºC. Acabada a segunda fermentação, ainda permanecem assim durante um período mínimo que vai de 15 meses (para os champanhes resultantes de assemblage) a três anos (para os millesimés), podendo chegar aos oito anos, dependendo do produtor e do tipo do champanhe. É aí, sempre em contato com as leveduras, que o champanhe vai adquirir riqueza e complexidade aromática (vide a expressão autólise, no vocabulário abaixo).

A etapa seguinte é o remuage, quando as garrafas já então colocadas em cavaletes providos de buracos (as pupitres) são remexidas periodicamente, para que o depósito de leveduras vá se soltando das paredes da garrafa, dirigindo-se progressivamente para o gargalo. Quem criou esse processo, em 1818, foi o chef-de-cave da Veuve Clicquot Ponsardin, Antoine de Muller.

O processo continua com o dégorgement (em português, “degola”), operação destinada a retirar o depósito com o mínimo de perda de líquido. As garrafas são mergulhadas de cabeça para baixo numa solução refrigerante a cerca de 20 graus negativos, congelando exatamente a parte do gargalo onde se acumularam as leveduras mortas. É o que se chama de dégorgement à la glace, inventado em 1884, nas caves da Maison Henri Abelé, hoje amplamente utilizado em toda a indústria. As garrafas são abertas logo em seguida e o depósito, na forma de um cilindro congelado, é expulso pela pressão do gás carbônico.

A operação termina com a adição do liqueur d’expédition, uma mistura de açúcar, champanhe envelhecido e, eventualmente, uma pequena dose de conhaque ou armagnac. É a quantidade de açúcar que vai determinar o tipo do champanhe, desde o extra-brut até o demi-sec.

O processo completo, desde a colheita da uva até a colocação do produto no mercado leva, no mínimo, três anos, o que explica, em parte, o alto preço final do champanhe. Por isso, não é a água, mas o champanhe, que deveria ser chamado de “precioso líquido”.

Vocabulário essencial

  • Assemblage: operação que consiste na mistura de vinhos base de castas diversas (Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier) e safras diferentes.
  • Autólise: rompimento das células mortas das leveduras, durante a segunda fermentação; o fenômeno libera aminoácidos, responsáveis pela complexidade aromática, pelo corpo e pela cremosidade do produto.
  • Blanc de blancs: champanhe elaborado exclusivamente com a casta Chardonnay.
  • Blanc de noirs: champanhe produzido exclusivamente a partir de variedades tintas (Pinot Noir e/ou Pinot Meunier).
  • Brut: champanhe com menos de 15 g/L de açúcar.
  • Dégorgement: processo de retirada do depósito da garrafa.
  • Demi sec: champanhe com 33 g/L a 50 g/L de açúcar.
  • Extra brut: champanhe que tem entre 12 g/L e 20 g/L de açúcar.
  • Liqueur d’expédition: mistura de açúcar e vinho base, adicionada ao produto pronto, para estabelecimento dos diferentes tipos de champanhe quanto ao teor de açúcar.
  • Liqueur de tirage: mistura de açúcar e leveduras selecionadas, adicionada ao vinho base, para que ocorra a segunda fermentação.
  • Millésimé: champanhe de uma única safra, declarada no rótulo.
  • Nature: champanhe que não leva liqueur d’expédition; o mesmo que pas dosé, dosage zero, brut nature. É o mais seco de todos os tipos.
  • Remuage: ato de remexer sistematicamente as garrafas nas pupitres, com o objetivo de levar as borras até o gargalo.

 

Sem fazer barulho, praticamente sem qualquer ação de marketing, o espumante brasileiro está se firmando no conceito do consumidor da forma como todo produto deveria fazer: pela qualidade. Por isso, apresento uma relação de espumantes nacionais capazes de fazer bonito no casamento dos filhos, no aniversário do marido, na beira da piscina ou num jantar chique. Não há qualquer pretensão de ser completo ou definitivo, é apenas uma pequena lista, sem ordem de preferência, que pode servir como ponto de partida. Vamos lá, então:

 

Cave Geisse Brut (www.cavegeisse.com.br) – a casa tem também os espumantes Nature, Terroir Nature, Terroir Rosé, Blanc de Blancs e Blanc de Noirs, além de um excepcional Brut 1998 – todos elaborados pelo método tradicional (ou champenoise) de segunda fermentação na garrafa;

 

Valduga 130 Brut (www.casavalduga.com.br) – este é o meu preferido, mas o espumante ícone da casa é o Maria Valduga Brut. Muito bom também é o Gran Reserva Brut. Mais simples, porém muito agradável, o Arte – todos feitos pelo método tradicional;

 

Chandon Excellence Brut (www.chandondobrasil) – feito pelo método Charmat (segunda fermentação em tanques de aço), como todos os produtos da casa. Também corretíssimo sempre é o Reserve Brut, o mais conhecido da Chandon brasileira. Ambos têm uma ótima versão em rosé. E para quem deseja um espumante adocicado – mas não doce demais – uma boa pedida é o Rich Demi-Sec;

 

Miolo Millésime (www.miolo.com.br) – produto ultrapremium da casa, método tradicional, sempre safrado. O Miolo Brut Cuvée Tradition (branco e rosado) também é muito bom;

 

Dal Pizzol (www.dalpizzol.com.br) – tem o Dal Pizzol  Brut Traditionelle e o Do Lugar Brut Charmat (ótimo custo/benefício);

 

Domno (www.domno.com.br) – casa do grupo Valduga, produz os espumantes Punto Nero (. Nero) Extra Brut e Brut, com ótimo custo/benefício;

 

Dignus (www.zonasulatende.com.br) – produto desenvolvido pelo enólogo Adolfo Lona, especialmente para o supermercado Zona Sul. Pessoalmente, prefiro o rosé, mas o branco também é bom. Excelente relação qualidade/preço;

 

Don Giovanni (www.dongiovanni.com.br) – gosto muito desta casa, que tem um Brut e um Extra Brut feitos pelo método tradicional;

 

Cave de Pedra, Angheben, Pizzato, Vallontano – todas essas casas têm espumantes de qualidade.

 

Espumantes de Santa Catarina – conheço e gosto dos produtos da Vinícola Pericó, Villa Francioni e Quinta da Neve (o recém-lançado Lírica)

 

Por Celio Alzer

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