Aos sete anos ela já se equilibrava nos galhos de árvores e dentro das canoas no médio São Francisco. “Vazanteira” de carteirinha, Isa é filha de Deoclesiano e Matilde. Em sua humilde casa eles vivem em harmonia com o rio. A pesca, o extrativismo e a agricultura garantem uma infância feliz para Isa.

Emília – uma boneca de pano – é a fiel companheira e confidente de Isa. Na cabeceira da cama, ela tem lugar cativo e não há sono que venha antes de um bom papo entre as duas.

Tudo corria feito o curso de um rio, até que o dia se fez noite pela primeira vez na vida de Isa. Deoclesiano que até então se mostrava com a saúde intacta teve mal súbito e deixou Isa e Emília. O silêncio tomou conta de todos os vazanteiros e até mesmo o Velho Chico parecia chorar a morte do amigo de tantos anos. Isa conhece a perda e se agarra mais ainda à Emília.

Passados três anos, a mãe de Isa a chama para uma conversa. No diálogo, ela conta que se casará novamente e vai com seu companheiro para o Mato Grosso. A pequena balança a cabeça como quem diz: “entendo e vou arrumar minhas coisas”; mas Matilde explica que Isa terá que ir para o Paraná morar com sua avó Sebastiana e assim que as coisas se ajeitarem ela vai buscá-la para viver com ela no centro-oeste. E o dia se fez noite pela segunda vez na vida de Isa.

Sebastiana era muçulmana e tinha um estilo de vida muito rígido. Havia horário para tudo em sua casa. Isa e Emília tiveram que aprender a conviver com a nova realidade.

Conta Isa que ela possuía duas peças de roupas “de sair”. Eram dois vestidos: um azul e o outro vermelho. Dia de um era sempre véspera do outro e isso obviamente a incomodava.

Os anos foram passando e a promessa de sua mãe não foi cumprida. Raramente encontrava sua progenitora. Decidiu então assumir as rédeas do seu destino e montou um plano para que um dia sua vida fosse mais que um par de vestidos. Definiu como meta passar no famigerado vestibular de medicina. Mas como? Pobre de marré,marré e com uma avó que tinha hora para que a luz fosse desligada à noite em sua casa. Reza a lenda que quem deu a solução óbvia foi Emília: estudar a luz de velas assim que Sebastiana dormisse. E assim foi feito. Foram noites e noites regadas a café, velas, palavras, números e livros. Fazia pequenos intervalos na madrugada. Momento em que pensava em Deoclesiano e no Velho Chico. Eram curtas e intensas viagens no tempo. Ela se via no colo do pai e nos braços do Velho Chico. Passados dez a quinze minutos já estava ela novamente correndo seus olhos pelo livro.

Em tempos sem internet o mundo girava bem lentamente. Notícia boa ou ruim demorava mais a chegar.

Às seis horas da manhã, no dia marcado, lá estava ela na banca da praça esperando o jornal. Sua vida mudaria a partir daquele dia. Isa seria médica. Sua formação ocorreria em terras capixabas; bem distante de Sebastiana e Matilde.

Chegado o dia, arrumou sua “malinha”, pegou Emília, ganhou alguns cruzeiros da sua avó e pegou um ônibus para Vitória. Sozinha na capital capixaba conseguiu uma vaga em uma pensão e sobreviveu dando aulas em cursinhos, escolas de ensino médio e outros “bicos” que apareceram pelo caminho. Os anos foram passando e sua formatura se aproximando. Não há noite que dure para sempre e Isa se formou médica com todo mérito que possa existir.

Namorou, não casou, comprou uma BMW, mas… não esqueceu sua infância. Conta ela que quando estiver velhinha, mas bem velhinha mesmo, vai voltar para as margens do rio. Quer morrer nos braços daqueles que sempre estiveram ao seu lado: Deoclesiano, Emília e o Velho Chico.

Por Dr. Alexandre Maulaz Barcelos.

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