Ansiedade cardíaca: O que é e qual o seu impacto no tratamento das doenças cardiovasculares

Ao se considerar a saúde do ponto de vista biopsicossocial, entende-se que os significados que o paciente atribui ao seu estado de saúde, bem como as crenças a respeito do prognóstico e do seu próprio papel no tratamento, têm grande impacto na maneira como ele vivenciará o adoecer. Assim sendo, o que os pacientes pensam a respeito da doença e do tratamento influencia diretamente a maneira como se sentem e, principalmente, a tomada de decisão e o comportamento.

 

Estudo de Furze et al.1, por exemplo, mostrou que crenças desadaptadas ou malconcebidas sobre angina têm um efeito deletério sobre a qualidade de vida e o seu funcionamento, contribuindo para o aparecimento de ansiedade relacionada à saúde, níveis reduzidos de atividade e baixa condição física1. Crenças errôneas sobre doença coronariana parecem ser ainda um fator preditivo para a baixa adesão e abandono precoce de programas de reabilitação cardíaca2.

 

Além disso, pacientes cardiopatas frequentemente apresentam comorbidades psiquiátricas3. Partindo do pressuposto de que existe uma forte associação entre a forma como os pacientes pensam, sentem e se comportam, a presença de comorbidades psiquiátricas, especialmente síndromes relacionadas à ansiedade e depressão, é possivelmente um fator interveniente no comportamento do paciente quanto ao seu tratamento. Ademais, já se encontra estabelecido na literatura o papel dos fatores psicológicos, notadamente sintomas de ansiedade e depressão, como fator de risco e de pior prognóstico para doenças cardiovasculares4-6. Assim, o reconhecimento de tais síndromes em pacientes cardiopatas é essencial para evitar complicações sérias e permitir o encaminhamento para o tratamento adequado. Entretanto, alguns estudos mostram que poucos clínicos investigam rotineiramente a presença de crenças mal-adaptadas7. Mais especificamente no tocante à ansiedade, pode ser um desafio, tanto para pacientes quanto para a equipe de saúde, em alguns momentos, distinguir entre sintomas clinicamente relevantes relacionados a doenças cardíacas e manifestações de ansiedade, especialmente em pacientes cardíacos que apresentam também quadros de ansiedade. Os limites geralmente não são claros, afetando negativamente a tomada de decisões clínicas e o tratamento8,9.

 

No início dos anos 2000, Eifert et al.10 apresentaram o conceito de ansiedade cardíaca (AC) como um tipo de ansiedade específica que parece ser relevante a diversas condições clínicas. De uma forma prática, a AC é o medo de estímulos e sensações relacionadas a sintomas e manifestações cardíacas percebidas, consideradas pelos pacientes como negativos ou perigosos. Trata-se de uma síndrome caracterizada por sensações aversivas ou dor precordial recorrentes, na ausência de alterações físicas que as expliquem10. Frequentemente, os indivíduos com alta AC assumem uma variedade de comportamentos hipocondríacos que aumentam o risco de procedimentos diagnósticos desnecessários e causam consideráveis gastos de recursos financeiros e médicos10. O modelo cognitivo-comportamental da AC destaca o papel da atenção direcionada ao coração e do condicionamento interoceptivo na origem de manifestações cardiorrespiratórias e da dor torácica aguda, gerando um ciclo marcado por preocupação, hipervigilância aos sintomas, evitação de atividades físicas e aumento da ansiedade11.

 

É importante notar que a AC pode afetar indivíduos com dor torácica cardíaca e não cardíaca, sendo também bastante comum em pacientes com transtorno de pânico11. Embora a AC tenha sido originalmente conceituada como um problema psicológico em indivíduos não portadores de doença física10, resultados de estudos realizados no Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB) mostram que ela também pode ser uma questão relevante no tratamento de pacientes cardiopatas9,12,13. Algumas evidências da literatura mostram que depois de receber um diagnóstico de doença cardíaca, alguns pacientes passam a se concentrar intensamente no funcionamento do coração, e ficam dominados pelo medo e preocupação com os sintomas cardíacos, confirmando o ciclo da AC anteriormente apresentado11. Infelizmente, a AC muitas vezes não é reconhecida como problema primário ou como fator que contribua para pior desfecho de uma condição médica existente, especialmente em pacientes cardiopatas e de emergência12. Vale notar ainda que a maior preocupação com o coração observada em pacientes com AC não se encontra diretamente associada a comportamentos que efetivamente contribuam para a redução do risco cardiovascular14.

 

Para auxiliar o clínico a investigar a presença de sintomas de AC e avaliar a necessidade de encaminhamento para tratamento especializado foi desenvolvido um instrumento psicométrico de autoaplicação, composto por 14 itens, denominado Questionário de Ansiedade Cardíaca (QAC). O QAC já foi traduzido e testado em diferentes culturas e amostras, tendo alcançado resultados consistentes.

 

Recentemente, Sardinha et al.12 publicaram, nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, artigo trazendo resultados dos estudos de validação da versão brasileira do QAC e apresentando sua versão definitiva em Língua Portuguesa, pronta para uso clínico no contexto da cardiologia. O questionário leva apenas alguns minutos para ser respondido pelo próprio paciente e existem evidências de que este pode ser bem compreendido por pessoas que tenham pelo menos escolaridade básica12.

 

A estrutura psicométrica do questionário permite que sejam avaliados sintomas de AC de forma geral, pelo simples cômputo da soma do escore total obtido, bem como fatores específicos como a preocupação e a evitação de atividades, em separado. Os resultados dos estudos de validação na população brasileira mostraram ainda que o QAC é uma ferramenta adequada e útil para as atividades de pesquisa e/ou triagem clínica, permitindo a identificação de pessoas com níveis particularmente altos de AC.

 

Assim, a proposta é que o QAC possa ser uma estratégia de triagem simples para a necessidade potencial de intervenções psicológicas em conjunto com o tratamento habitual das doenças cardíacas. Essa triagem rápida pode ser particularmente útil em serviços cardiológicos ambulatoriais ou de emergência, muito movimentados, para evitar procedimentos invasivos desnecessários e facilitar a adesão ao tratamento prescrito. Através da utilização dos escores das subescalas, também é possível identificar quais aspectos específicos da AC estão disfuncionalmente altos e requerendo intervenção psicológica. É provável que uma pessoa com escores mais altos no QAC possa se beneficiar de uma investigação psiquiátrica mais aprofundada para prevenir e tratar comportamentos que possam influenciar negativamente no seu funcionamento, tratamento e prognóstico12.

 

As intervenções psicológicas baseadas no modelo cognitivo-comportamental da AC, que originou os itens do QAC, devem ser planejadas para auxiliar esses pacientes, com ou sem doença cardiovascular, a quebrar o ciclo de ansiedade, excesso de atenção e preocupação com foco no coração, busca de reasseguramento, apresentação de sintomas e, consequentemente, mais ansiedade11,12. Após o encaminhamento, o QAC também pode ser útil na identificação dos alvos terapêuticos mais pertinentes e na mensuração da efetividade de intervenções dirigidas a aspectos específicos da AC11.

 

Aline Sardinha

Psicóloga com formação clínica em Terapia Cognitivo-Comportamental, Doutora em Saúde Mental (IPUB/UFRJ), Coach certificada pela Middlesex University, Membro da Diretoria da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC) e Coordenadora da Jornada de Psicologia em Cardiologia da SOCERJ 2014.

 


 

Referências

  1. Furze G, Lewin RJ, Murberg T, Bull P, Thompson DR. Does it matter what patients think? The relationship between changes in patients’ beliefs about angina and their psychological and functional status. J Psychosom Res. 2005;59(5):323-9.

 

  1. Yohannes AM, Yalfani A, Doherty P, Bundy C. Predictors of drop-out from an outpatient cardiac rehabilitation programme. Clin Rehabil. 2007;21(3):222-9.

 

  1. Bankier B, Januzzi JL, Littman AB. The high prevalence of multiple psychiatric disorders in stable outpatients with coronary heart disease. Psychosom Med. 2004;66(5):645-50.

 

  1. Lichtman JH, Bigger JT Jr, Blumenthal JA, Frasure-Smith N, Kaufmann PG, Lespérance F, et al; Depression and coronary heart disease: recommendations for screening, referral, and treatment: a science advisory from the American Heart Association Prevention Committee of the Council on Cardiovascular Nursing, Council on Clinical Cardiology, Council on Epidemiology and Prevention, and Interdisciplinary Council on Quality of Care and Outcomes Research: endorsed by the American Psychiatric Association. Circulation. 2008;118(17):1768-75.

 

  1. Fleet R, Lespérance F, Arsenault A, Grégoire J, Lavoie K, Laurin C, et al. Myocardial perfusion study of panic attacks in patients with coronary artery disease. Am J Cardiol. 2005;96(8):1064-8.

 

  1. Sardinha A, Nardi AE, Zin WA. [Are panic attacks really harmless? The cardiovascular impact of panic disorder]. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(1):57-62.

 

  1. Furze G, Bull P, Lewin RJ, Thompson DR. Development of the York Angina Beliefs Questionnaire. J Health Psychol. 2003;8(3):307-15.

 

  1. Katerndahl D. Panic plaques: panic disorder & coronary artery disease in patients with chest pain. J Am Board Fam Pract. 2004;17(2):114-26.

 

  1. Sardinha A, Araujo CGS, Soares-Filho GL, Nardi AE. Anxiety, panic disorder and coronary artery disease: issues concerning physical exercise and cognitive behavioral therapy. Expert Rev Cardiovasc Ther. 2011;9(2):165-75.

 

10. Eifert GH, Thompson RN, Zvolensky MJ, Edwards K, Frazer NL, Haddad JW, et al. The cardiac anxiety questionnaire: development and preliminary validity. Behav Res Ther. 2000;38(10):1039-53.

 

11. Zvolensky MJ, Feldner MT, Eifert GH, Vujanovic AA, Solomon SE. Cardiophobia: a critical analysis. Transcult Psychiatry. 2008;45(2):230-52.

 

12. Sardinha A, Nardi AE, Araujo CG, Ferreira MC, Eifert GH. Brazilian portuguese validated version of the cardiac anxiety questionnaire. Arq Bras Cardiol. 2013 Oct 22. [Epub ahead of print].

 

13. Sardinha A, Araújo CG, Nardi AE. Psychiatric disorders and cardiac anxiety in exercising and sedentary coronary artery disease patients: a case-control study. Braz J Med Biol Res. 2012;45(12):1320-6.

 

14. Kuhl EA, Fauerbach JA, Bush DE, Ziegelstein RC. Relation of anxiety and adherence to risk-reducing recommendations following myocardial infarction. Am J Cardiol. 2009;103(12):1629-34.

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