Reflexões Sobre a Justaposição Social do Rio de Janeiro

 

Gláucia Maria Moraes de Oliveira

Instituto do Coração Edson Saad – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro, RJ – Brasil

Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de janeiro

A configuração geológica da cidade do RJ, morros resguardados por pântanos, favoreceu o desenvolvimento do modelo de acrópole, que era o modelo militar e sanitário ideal da época. Porém, diferente de outras cidades litorâneas, não havia a foz de um rio que garantisse o abastecimento de água doce. As construções de chafarizes, cisternas e poços, no século XVIII, minimizaram o principal problema da cidade na época, que era a falta de água.

A acrópole se desenvolveu inicialmente no Morro do Castelo, sendo aterrados pântanos e lagoas, se expandindo para os Morros de São Bento, Conceição e Santo Antônio, onde permaneceu por três séculos. As planícies cultiváveis do interior da baixada Fluminense forneceram os alimentos e a cachaça, usada como moeda para adquirir escravos na África. O centro especializou-se no comércio.

Em 1799 a área que hoje corresponde, aproximadamente, ao município do Rio de Janeiro contava 43.326 moradores que correspondia a um quarto da população de Londres que era de 200.000. Um quinto destes moradores, do Rio, eram escravos, tendo este número duplicado vinte anos depois. A casa brasileira no século XIX era movida pelo braço escravo. As condições sanitárias eram ruins, tendo ocorrido várias epidemias de varíola no século XIX. A limpeza das ruas só foi organizada em 1808. No século XIX surgiram cursos para instrução profissional dos escravos, que pretendiam ensiná-los a ler, escrever, contar, costurar, cozinhar, cuidar de jardins e conduzir coches. Nota-se assim, a grande influência africana na cultura popular carioca. Ao passo que a influência da cultura indígena é bem menos marcante.

Até o século XIX, os pobres que não dispunham de meios de transporte individuais, tinham como opção viver no centro da cidade, amontoados em cortiços. Os bairros do RJ foram construídos ao redor dos morros, que dificultou seu sistema de transporte. A pobreza se concentrava no centro, enquanto a riqueza se mantinha distante das praias e das encostas, fugindo dos mosquitos e buscando a água limpa. Este padrão permaneceu até a modificação urbanística da cidade, quando os ricos migraram para a orla marítima e os pobres, prestadores de serviços, passaram a ocupar as várzeas próximas aos morros e depois os próprios morros próximos as praias. Desse modo, praticamente todos os bairros abrigam os diferentes estratos sociais, onde os mais pobres prestam serviços às classes abastadas, dividindo com essas o espaço. Criou-se assim a justaposição social característica do Rio, onde, por exemplo, da praia de São Conrado se avista a Rocinha, maior favela urbana do Brasil.

Desde sua fundação a cidade do Rio de Janeiro consolidou a sua vocação mercantil, servindo de apoio à ligação do Império Português com as Índias, através da costa africana. Os portugueses se estabeleceram na cidade, que se tornou praça de fornecimento de escravos para as minas do Peru e da Bolívia, de onde, em contrapartida, se fazia o contrabando da prata.

Posteriormente, o Rio adquiriu função estratégica militar por sua configuração física, com a Baía da Guanabara cercada pela Serra do Mar, que guardava os tesouros das Minas Gerais. Esta função militar da cidade do Rio foi fundamental para a consolidação da unidade territorial para a Coroa Portuguesa. O Rio serviu de apoio à luta contra os holandeses na retomada do Nordeste, na reconquista de Angola, e na expansão para o Sul do país, Sacramento e o Presídio do Rio Grande, que foram operações bancadas pela elite do Rio de Janeiro.

Além do mais, o Rio consagrou-se como o destino seguro para o ouro através do Caminho Novo, do interior para a costa, aberto pelo paulista Garcia Paz, seguindo de Minas e atravessando Paraíba do Sul, Barra do Piraí, Tinguá, Iguaçú, São João do Meriti, perfazendo seis semanas de viagem. Desse modo, controlar o fluxo do ouro, o comércio exterior e o contrabando foram as principais funções administrativas dos vice-reis.

O Brasil se tornou Vice-Reinado em 1640, tendo inicialmente a cidade de Salvador como sua sede administrativa. A partir de 1763 a cidade do Rio de Janeiro se tornou a sede definitiva do Vice-Reinado, compreendendo a Capitania do Rio, a cidade propriamente dita e os distritos de Maricá, Cabo Frio, Campos dos Goytacases e a Ilha Grande. A Corte de D. João VI se deslocou para a cidade em 1808 e, em 1818, a cidade do Rio de Janeiro assistiu à coroação de D. João VI. Nesta época, o sistema de ensino foi desorganizado com a expulsão dos jesuítas e era comum, em jornais, a oferta de aulas particulares ministradas por professores europeus.

Com a instalação da Corte Portuguesa no Rio ocorreu um aumento da renda per capita, com desenvolvimento e diversificação das atividades econômicas e sociais, tendo o Rio sofrido influências portuguesas, francesas e inglesas. Por outro lado, intensificou-se o problema da falta de terrenos edificáveis, aumentando os aterramentos e a requisição de habitações com o chamado “PR” (Príncipe Real ou Ponha-se na rua), e o da falta de água. A demanda por serviços domésticos fez proliferar a figura do escravo urbano e a do prestador de serviços logísticos que precisava morar o mais próximo possível de seu mercado de trabalho. Ainda que o fluxo inicial tivesse sido de portugueses aventureiros em busca de ouro, posteriormente os mesmos vieram em busca do mercado de serviços urbanos e deixaram sua influência marcante na população.

No século XVIII, embora inicialmente proibidos, a extração do sal, os teares e o plantio de especiarias, para obrigar a importação destes produtos, houve um impulso desenvolvimentista, tendo o marquês do Lavradio, entre outros, fomentado uma série de atividades, que variaram desde a construção naval às plantações de chá, anil, cânhamo, gengibre, erva-doce e café.

Do desmembramento da Capitania Real do Rio de Janeiro, para defesa do território português no século XVII, surgiu grande parte dos atuais municípios do estado do RJ, donde se destacam Cabo Frio, São Pedro da Aldeia, Angra dos Reis, Campos dos Goytacazes, Maricá, São João de Meriti, São Gonçalo, São João da Barra, Guaratiba, Itaboraí e Sepetiba.

As atividades econômicas da região, como o plantio da cana de açúcar e do café, foram baseadas na mão de obra escrava. O café plantado inicialmente no Rio, no Maciço da Tijuca, se expandiu para a Província Fluminense, onde se desenvolveu como a principal atividade econômica do Império Brasileiro na época. O açúcar, plantado em Campos, teve uma expressão contínua, porém de porte inferior a do café e, permaneceu presente na economia da província graças a mecanização, com a instalação de engenhos a vapor. Os produtores fluminenses, diferente de seus congêneres paulistas, não se organizaram para o beneficiamento do café a partir da queda do abastecimento de escravos. Assim, entre 1800 e 1850 a prosperidade do café fluminense fez cair o preço do produto nos mercados interno e externo aumentando seu consumo. Contudo, ainda que a produção do café permanecesse em alta entre 1850 e 1870, os custos da produção se elevaram muito e os cafezais se tornaram decadentes, declinando sua rentabilidade a partir de 1880. Nesta época surgiu a diferenciação do café do tipo Rio, daquele produzido em São Paulo, chamado de tipo Santos, este último o mais valorizado no mercado internacional. Iniciou-se aí a decadência do café fluminense, que não foi substituído por outro produto. No final do século XIX e início do século XX a supremacia da produção do café passou para São Paulo. Mais adiante, já no século XX, ocorreu o esvaziamento econômico do interior da província do Rio, restando a extração de sal em Araruama e Cabo Frio, a indústria pesada em Volta Redonda e Macaé, e as cidades que serviam como estâncias de veraneio dos ricos, como Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.

Com a criação do Município Neutro em 1834, que separou administrativamente a Província Fluminense do município do Rio de Janeiro, este foi consagrado como a capital do Brasil, situação em que permaneceu até 1960, quando a mesma foi transferida para Brasília. A cidade do Rio se voltou para si mesma, desprezando a crise do café que assolou a Província Fluminense no final do século XIX. Já em 1975, com a fusão da Guanabara, atual município do Rio, com o Estado do Rio de Janeiro, antiga Província Fluminense, foi novamente reconstituído o desenho territorial preexistente à constituição do Município Neutro.

Com a interrupção do fluxo de escravos em 1830, esses foram progressivamente substituídos por libertos e imigrantes portugueses pobres. Os escravos libertos permaneciam nas cidades pela possibilidade de reescravização no interior. Os ex escravos viviam em cortiços desenvolvendo atividades domésticas, prestação de serviços urbanos, de artesanato e de pequeno comércio ambulante. Competiam frequentemente com os imigrantes portugueses que, em 1890, representavam um quinto da população do Rio, sendo na sua maioria homens. No interior os escravos libertos se mantinham em atividades agrícolas, como agregados, subordinados aos donos da terra.

Pouco expressivo foi o trabalho assalariado, com exceção do complexo industrial criado pelo barão de Mauá, da indústria têxtil e da fundição de ferro. Mesmo assim os salários eram baixos, as jornadas de trabalho longas e as condições de trabalho muito ruins, prorrogando a economia do trabalho escravo. A localização dos cortiços, moradias dos cariocas pobres e livres, era próxima ao mercado de trabalho e da água. Os cortiços eram focos de epidemias, além de propiciarem a disseminação de violência, pelo excesso de aglomeração e precariedade de instalações. No final do século XIX e início do século XX sua construção passou a ser proibida.

No ano de 1890  a cidade do Rio tinha mais de 522 mil habitantes e em 1906 este número subiu para 817 mil. A cidade se expandiu na segunda metade do século XIX, através da navegação a vapor, integrando Niterói à futura região metropolitana do Rio e, com a Estrada de Ferro Mauá, interligou a Raiz da Serra com o fundo da baía, permitindo o povoamento de Petrópolis. Nesta região serrana o império promoveu a colonização com europeus setentrionais, também com a intenção de branquear a população. Cabe ressaltar que em 1877 existiam 370 mil escravos na cidade e na província Fluminense. A introdução de novos meios de transporte reduziu o tempo de viagem entre as fazendas e as cidades, promoveram o deslocamento da moradia dos fazendeiros ricos para centros urbanos. Na segunda metade do século XIX o Rio de Janeiro foi o epicentro da economia brasileira, com uma produção de café três vezes maior do que a de Minas Gerais e dez vezes maior do que a de São Paulo, além de possuir importante produção de açúcar em Campos.

Nos anos iniciais da República, a cidade do Rio sofreu modificações estruturais na tentativa de modernizar a capital, transformando-a na Paris dos Trópicos e na Cidade Maravilhosa. A modernização do Rio foi realizada sem consulta à população, tentando esconder a maioria do povo, pobre, negro ou mestiço, tornando ainda mais difícil sua sobrevivência. A ideia era apagar os vestígios do Rio Colonial. Para isso foram tomados pesados empréstimos, especialmente na Inglaterra, que repercutiram em maior endividamento. Dentro deste contexto era preciso sanear a cidade, assolada por vários surtos de febre amarela, além de periódicos surtos de varíola, peste bubônica, cólera e tuberculose. Oswaldo Cruz, com sua campanha contra o mosquito vetor da febre amarela e a vacina contra a varíola, juntamente com Carlos Chagas, com seus trabalhos sobre o Tripanosoma cruzi, e o Instituto Vital Brazil, com o soro antiofídico, modificaram a imagem de pestilenta que a cidade detinha. A medicina curativa limitava seus cuidados aos ricos. Para os pobres existia o sistema filantrópico da Santa Casa de Misericórdia. Um decreto imperial extinguiu a escravatura, porém prolongaram-se na República as desigualdades sociais herdadas do período anterior. Este problema, nos primeiros anos da República, está perenemente retratado na obra de Machado de Assis.

Nas décadas douradas, que compreenderam os anos de 1920 a 1960, a cidade do Rio acumulou prosperidade e prestígio no cenário nacional, enquanto São Paulo atingia a supremacia da produção industrial brasileira. O interior do estado do RJ, após o destaque propiciado pelo cultivo do café, diferente do ocorrido em São Paulo, permaneceu em lenta e progressiva decadência não sendo capaz sequer de fornecer alimentos perecíveis para a capital. Neste cenário só observamos a exceção da inauguração da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda, durante a Era Vargas. Por outro lado, a Região Metropolitana cresceu rapidamente com a eliminação da malária, a drenagem das várzeas e a implantação das indústrias de transformação, fixando um grande contingente de pessoas de baixa renda nesta região.

Também nesta época houve remodelamento da cidade do Rio, com um grande número de demolições e desmontes na tentativa de modernização da cidade, especialmente no Centro, que deveria abrigar um polo econômico. O desmonte do Morro do Castelo e de Santo Antônio forneceu material para a construção de várias obras, entre as quais o Aeroporto Santos Dumont. Houve também a expansão da cidade em direção aos subúrbios, sendo criados novos bairros que foram incentivados pela fixação de indústrias nestes locais e pela eletrificação das linhas ferroviárias, que tornaram possível aumentar a distância entre o trabalho e a residência. A favela foi romantizada como o local em que se democratizavam as diferenças culturais e raciais. Os mitos de Copacabana, a praia que congregava a elite e o homem comum, e o do Cristo Redentor, que destaca a cidade, como a Torre Eiffel em Paris e a Estátua da Liberdade em Nova Iorque, são símbolos do século XX. Foram criados novos pilares educacionais, como a Universidade do Brasil, e novas escolas de nível médio. Na saúde ampliou-se a rede de hospitais e de esgoto sanitário. O futebol, a inauguração da Rede Nacional, a divulgação de determinados gêneros musicais, como a Bossa Nova, e a organização das escolas de samba, são os bens culturais próprios do Rio desta época. O carioca Villa-Lobos projetou o Brasil no cenário da música erudita original do século XX.

Para o entendimento da evolução do Rio de Janeiro se faz necessário acompanhar a evolução do estado de capital até o despojamento desta função. Assim, no Brasil Colonial, o Rio de Janeiro foi a porta de recepção dos visitantes, inclusive estrangeiros, estabelecendo a conexão do Brasil com as demais culturas e assimilando as ideias de fora e de dentro, estabelecendo padrões de comportamento para todo o país. Além de porto tradicional e polo mercantil, o Rio recebia recursos adicionais para a manutenção do poder público. Com a transposição da capital para Brasília, e antes da fusão, não foram corretamente avaliadas as perdas do esvaziamento político do Rio, contraposto pela continuação do milagre econômico do início dos anos 1970.Após a fusão, e por meio do II Plano Nacional de Desenvolvimento, diversas tentativas foram realizadas para implementar o desenvolvimento científico e tecnológico do atual estado do RJ. Na década de 1980 ficou demonstrada a incapacidade destas medidas para revitalizar o estado do RJ e, ainda mais, manifestou-se o anacronismo do porto do Rio. A progressão da crise brasileira, a partir da década de 1980, vem empobrecendo ainda mais o estado do RJ.

Por outro lado, cresceu a violência neste período refletindo o padrão metropolitano e o sucesso do narcotráfico. Este encontrou um berço perfeito na favela, criando um círculo de proteção e ao mesmo tempo de deterioração da vida dos favelados, que têm suas opções cada vez mais restritas. Na segunda metade do século XX, São Paulo viu crescer seu parque industrial na região metropolitana, e o epicentro da economia brasileira se tornou o ABC paulista, e além disso, o interior paulista atraiu grande contingente de imigrantes europeus. Já a indústria fluminense manteve-se com a produção de bens intermediários. Ainda que o estado produza 80% do petróleo e gás do país, tendo energia barata, vê a maior parte das indústrias serem extintas ou transladadas para outras regiões. Associada a esses fatos, a população do RJ apresenta declínio no crescimento e aumento na expectativa de vida, tendendo a ser uma população adulta e idosa, onde um terço dos chefes de família são do sexo feminino. Da população economicamente ativa, metade tem empregos formais que se situam, em sua maioria, no comércio e na prestação de serviços. No município do Rio se encontra o maior número de servidores públicos federais.

Além do problema da favela na cidade do Rio, o Cinturão Metropolitano, parte da Região Metropolitana, que exclui os municípios do Rio e Niterói, foi abandonada a sua própria sorte de há muito, tornando-se uma bomba de efeito retardado. O censo de 1991 identificou cerca de15% de domicílios subnormais nesta região, que apresentavam uma situação pior do que na Região Metropolitana de São Paulo. Tem ainda uma precária rede de saúde primária e secundária, que acaba por sobrecarregar os hospitais terciários da cidade do Rio. A violência é uma constante na Região Metropolitana do RJ, e 90% das vítimas são adultos jovens de famílias de baixa renda. Aí também o narcotráfico tem um importante peso, uma vez que 60% dos homicídios estão a ele relacionados. Devemos também ressaltar que o crescimento demográfico do Cinturão Metropolitano é muito superior ao das cidades do Rio e Niterói, reforçado pelo fluxo advindo do interior fluminense.

Ao observarmos a evolução do estado do RJ e sua capital, constatamos a progressão da crise brasileira, a cristalização das insuficiências do país, e a perda de autoestima maximizada pela globalização, onde a privatização e o sucateamento das indústrias brasileiras nãodiminuíram a gigantesca dívida externa.

Ao longo do século XX assistiu-se a atenção do país se deslocar progressivamente do Rio para São Paulo, sem reação da população do Rio, que não se percebeu esvaziada social, econômica e culturalmente. Essa população, só recentemente, acordou para a necessidade de estudar seus próprios problemas, de origem econômica e social. Nesta última categoria se situa a saúde, especialmente a cardiovascular, principal causa de mortalidade atualmente nos países industrializados. A escassez de estudos sobre a mortalidade por doenças do aparelho circulatório impressiona quando revisamos a literatura sobre o país, apesar de um bom número de estudos publicados nos últimos 20 anos sobre a mortalidade em São Paulo.

Fonte:  Lessa C. O Rio de todos os Brasis – Uma reflexão em busca de auto-estima. Editora Record, 2000

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