– Doutor, o paciente do leito 9 do CTI entrou em morte cerebral.
– É mesmo, já foi confirmado?
– O Dr. Celso pediu para o senhor ir confirmar.
– Ok, to indo.
-Oi, Celso.
– Oi, Almada. Já fizemos o primeiro protocolo, dá pra você confirmar?
– Claro.
Assim se iniciou o cortejo da morte cerebral do paciente do leito 9 do CTI. Agora teria que ser avisado o Rio Transplante sobre a possibilidade de um potencial doador e também a Assistência Social do Hospital para a localização e chamada para comparecimento de familiares para “aquele papo” sobre a doação dos órgãos do paciente.
Ficou acertado também que o segundo protocolo deveria ser feito dentro de 12 horas a partir do primeiro e aí, então, contatar novamente o Rio Transplante para comparecer ao Hospital para elaboração do método gráfico.
Cerca de meia-hora atrás, eis que chegam os familiares para conversar com o Dr. Almada, mais ou menos cinco pessoas de aspecto humilde e bastante interessadas no assunto, que seguiu como seguinte diálogo:
– Vocês são os familiares do leito 9? Sou o Dr. Almada.
– Ah, pois não, doutor. Eu sou a esposa dele, identificou-se uma mulher de meia-idade, baixa e de roupas sóbrias.
– E eu sou o filho mais velho, prazer, doutor, apresentou-se um homem na faixa dos trinta anos, oferecendo a mão pra o Dr. Almada, que prontamente a apertou.
– Prazer também, e a todos. Estamos aqui para tratarmos de um assunto bastante sério. Vocês já ouviram falar em morte cerebral e doação de órgãos para transplante?
– Doação já ouvi falar, mais ou menos, Mas essa morte cerebral, não.
– Morte cerebral é quando o corpo de uma pessoa ainda continua a funcionar e o cérebro já morreu.
– Ahn… Assim como uma parte de alguma coisa já não tá mais valendo nada?
– É, isso mesmo. Como alguns de vocês já ouviram falar, tem um programa de transplante de órgãos . Aqui no hospital trabalhamos em conjunto com o Rio Transplante e toda vez que um paciente fica em morte cerebral nós chamamos aquele serviço para que o transplante possa ser feito.
– Muito bem, doutor. Deixa ver se entendi. Quando morre alguém e tem essa tal de morte cerebral se faz transplante?
– É, por aí.
– Deixa ver… Ah, acho que entendi. E o quê que a gente tem que fazer?
– No momento só esperar para a confirmação da morte cerebral e depois vocês serão chamados para dar a autorização pra o transplante. Que fique bem claro: tem que ter a autorização de uma pessoa da família que tenha autoridade para isso. Se o paciente for casado, de papel passado, a sua mulher, ou marido. Se não, o parente mais próximo.
– Ih, tá bem. Então a gente vai pra casa e vamos conversar entre nós e depois voltamos. Que hora temos que voltar?
– Daqui a umas 12 horas, para a confirmação estar pronta.
Saíram os parentes do paciente do leito 9 e prosseguiu-se nos trâmites para a confirmação da morte cerebral. Doze horas após o primeiro protocolo foi feito o segundo, o Rio Transplante notificado veio fazer o método gráfico, assim como a checagem definitiva para ver se o potencial doador estava apto realmente para doar seus órgãos. No horário combinado voltaram os parentes, todos com expressões felizes e sorridentes, o que causou certo espanto na equipe que cuidava do paciente do leito 9.
Após as assinaturas da concordância para o transplante, tudo resolvido, a equipe cirúrgica para a retirada, a sala de cirurgia pronta e o anestesista a postos, o filho mais velho e a mulher do paciente do leito 9 quiseram falar em particular com o dr. Almada. Dirigiram-se para uma sala vazia e o dr. Amada perguntou qual era o assunto que eles desejavam esclarecer, pensando em um possível pedido para que as pessoas receptoras dos órgãos do paciente pudessem ser conhecidas por eles quando o filho iniciou a conversa.
– Doutor, é o seguinte. A gente já conversou tudo, mas uma coisa a gente ainda não sabe.
– Pois não? O que é?
– Quanto tempo depois do transplante a gente pode levar nosso pai para casa?
– Levar para casa? Como…?
– É isso, doutor. Quanto tempo depois do transplante ele já vai poder ter alta do hospital?
– Não estou entendendo. O pai de vocês não vai ter alta. Ele vai ser enterrado depois da doação dos órgãos.
– Que é isso? Vão tirar órgãos dele?
– Sim, claro, isso é a doação e o transplante. Os órgãos do pai de vocês vão para outra pessoa que precisa deles.
– Então, se é assim, nada feito.
– Como nada feito?
– É. Nós conversamos e chegamos a conclusão de que se fizerem o transplante nele, tudo bem. A gente aceita.
-Hein ?
– É, mas se for pra tirar dele pra outro, não.
-Como que não, vocês não concordaram com o transplante?
– Com o transplante, concordamos sim.
-E então…
– Mas, explica, doutor. Ele não estava em morte cerebral?
– Estava…
– Então, o cérebro dele não estava mais funcionando, né?
-É…
– Pois, é. A gente pensou que o transplante era pra dar um cérebro novo pra ele!
– Mas isso não existe! O transplante é dos órgãos de quem morreu pra outro vivo, que está precisando.
– Então desculpe, doutor. Desse jeito a gente não quer.
E o transplante dos órgãos do paciente do leito 9 não aconteceu. Será que informamos erradamente aos familiares o que era um transplante, ou será que a capacidade intelectual deles não alcançou a dimensão do problema? Onde será que nessa via de várias mãos entrou-se no desvio errado?
(O seguinte texto é parte do livro a ser publicado em 2014 pela SOBRAMES-RJ : Crônicas de Humor Médico )
Por Carlos de Almada-Rocha
Neurocirurgião, escritor e poeta da SOBRAMES –RJ