Sobrames/RJ – O Cão Meliante

Rose Matuk

Em uma pacata rua da zona sul, morava o Comandante Silvério, capitão de mar e guerra, aposentado, organizado, exigente, correto com suas dívidas, cumpridor de suas obrigações como cidadão e como profissional, e grande apreciador de Whisky só dos bons, que mantinha em invejável coleção num armário de sua sala, milimetricamente expostos e organizados.
Todo o dia pela manhã, costumava passear pela praia ou pelas ruas do bairro e todo o domingo jogava tênis, numa rotina, quase cristã.
Num desses dias rotineiros, na praia, se aproxima dele, um cãozinho branco, vira-lata, esquálido e desprotegido com olhos pedintes e convincentes. Foi o suficiente para o Comandante levá-lo para sua casa, iniciando-se aí uma amizade profunda..

Dia após dia, o Comandante se afeiçoava ao cãozinho. Floquinho crescia em graça e beleza, se é que crescia, e se aquilo poderia chamar de beleza, mas amizade é amizade…
À medida que Floquinho amadurecia, apresentava traços desconhecidos de sua personalidade, surpreendendo até mesmo nosso amigo, que ora se constrangia, ora se envergonhava.
Já dono da situação e conhecedor de todas as manhas e artimanhas da zona sul, Floquinho, sentia-se um verdadeiro cão de estirpe. Queria comer todas as cadelas da praia, não livrando nenhuma de sua saga canina, irracional, devastadora e quase humana, não poupando nem raça nem credo.

A situação começava a fugir ao controle de Silvério, pois a cada dia, as fugas de Floquinho se tornavam mais freqüentes. Sorrateiramente ele invadia os apartamentos vizinhos, na intenção de “se dar bem”, com as cachorras das madames, da circunvizinhança. Era um desespero: portas sempre fechadas, olhos sempre atentos,
ouvidos sempre alertas, um contínuo estado de vigília, cuidando para que o ex-esquálido, hoje robusto cãozinho não adentrasse em busca de suas cadelas.
Cansados de tanta tensão e após inúmeras tentativas fracassadas, resolveram organizar-se. Os moradores lesados reuniram-se com o firme propósito de descobrir quem era o proprietário de tal meliante.

As Reuniões tornavam-se cada vez mais acaloradas, a cada investida bem sucedida do meliante contra as pobres cadelas indefesas da zona Sul. Um verdadeiro acinte ante a intelectualidade ali reunida: Delegados, Professores, Filósofos, Médicos todos lesados pelo intrépido vira-lata.
Formaram um movimento em prol da moral e da decência para preservação da do pedigree canino. O fervilhante grupo de intelectuais tentava em vão por analogia chegar as características do dono, partindo da premissa que todo cão reflete a imagem do dono. Seria o rapaz do jornal que morava ali perto numa casa de cômodos? Seria o açougueiro cuja fama de comedor ia longe? Seria o servente solteiro que morava no prédio da esquina?

Enfim, tantos supostos culpados surgiram, num sem fim de possibilidades que se dividiram em grupos para observar os possíveis suspeitos e com o firme propósito de que se nada desse certo enviariam o pobre “dessa vida para outra melhor” aquele pobre e inocente cãozinho que nem de longe suspeitava do destino que lhe destinavam .
Dias, semanas e nada… Toda a estratégia de guerra era desmontada pela rapidez fulminante com que Floquinho executava sua força tarefa.
Numa dessas manhãs corriqueiras, Silvério modificando sua sagrada rotina de horário, desfilava orgulhoso ao lado de seu inseparável amigo, ante o olhar estupefato da alta cúpula do movimento Pró decência. Foi uma surpresa, geral, ouviu-se um coro uníssono na Rua Cupertino Durão:

– ” Ahhhh… o comandante!!!!…Jamais poderíamos imaginar… homem tão distinto…. ”
Não posso deixar de externar minha tristeza ao ver o olhar cabisbaixo de Silvério, ao receber um abaixo assinado pedindo a retirada imediata de Floquinho da redondeza…
Não!! Ele não podia acreditar no que estava acontecendo. Para onde levaria seu amigo de tantas horas, de tantos passeios? Quem aceitaria Floquinho? Sua Mãe? Não, não, ela não resistiria a essa vergonha… além do que seria arriscado…

Silvério nutria verdadeira adoração, uma admiração sacro santa secreta pelo seu amigo, pois afinal, aquele vira-lata, ignorante, ex –esquálido era um verdadeiro estrategista…Floquinhus Bonaparte, O Grande.. Resolveu ignorar os queixosos, estava disposto até as últimas conseqüências para defender seu amigo.
Imaginou uma verdadeira praça de guerra onde as frágeis viaturas policiais novinhas 1.0 que o delegado orgulhosamente ostentava, seriam literalmente esmagadas pelos robustos Tanques de Guerra da Marinha Brasileira.

Os Tanques chegariam por todos os lados encurralando o inimigo numa operação militar rápida e fulminante, “blitz Krueger”, logisticamente correta, que os levaria a vitória. Floquinho de capacete na escotilha teria seu nome mudado para nome de Floquinho para Floquinho Tzu, numa homenagem ao seu ídolo na Arte da Guerra, e triunfantes comandariam toda a operação.
Viveu minutos de raro e impagável prazer ao imaginar a cara do Delegado sendo derrotado por um cachorro; enfim a impagável satisfação da vingança..
Absorto em seus pensamentos as horas e os dias se seguiam, até que um dia tomado de surpresa recebeu um Mandado de prisão para Floquinho, onde exigiam que seu amigo fosse escoltado como prisioneiro de máxima segurança até o presídio da Frei Caneca.

“…Aquele cachorro do Delegado havia vencido, nada mais havia a fazer como homem rigorosamente cumpridor da lei, a não ser cumpri-la…”
Jamais poderia compreender porque punir seu amigo por exercer aquilo que todos os homens considerariam um mérito, um orgulho, um troféu, uma missão divina inerente somente aos machos das espécies…

Os dias que se seguiram foram de muita dor para Silvério após a partida de Floquinho para o presídio. Soube mais tarde que rapidamente se enturmou com um bando de outros nove cachorros meliantes do presídio…
Até hoje Silvério lembra dele com saudades… assim como todas as cadelas da vizinhança na Cupertino Durão …

Por José Manoel Gorgone de Oliveira

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