Aqui se Faz, Aqui se Pega?

                                                                                                                      Lucia Leite

O médico de família devido ao modo como desenvolve seu trabalho, visita no domicílio os pacientes de sua área, promovendo a vigilância em saúde que é muito mais do que o atendimento domiciliar à doença. Com o tempo, torna-se conhecedor das pessoas, das relações entre elas, seus segredos, seus problemas, suas paixões, seus dramas.

Clara era uma paciente que tinha dificuldade de levar a filhinha menor de um ano à consulta regular de Puericultura. Ela saía cedo de casa, deixava primeiro a filha na creche e ia para o trabalho, só retornando após as 17 horas, quando a Unidade de Saúde já estava fechada. Sem parentes na comunidade, sem amigos confiáveis, casada com um homem ao qual ela não delegava os cuidados com a filha, constantemente, atrasava a vacinação da criança e só a levava ao posto quando apresentava algum sinal de doença.

Conhecedora das dificuldades dessa mãe, a médica de família passou a marcar a consulta da filha Leticia para antes do horário de abertura da Unidade, por volta das sete e meia para não atrasar a ida de Clara ao trabalho e garantir o acompanhamento do desenvolvimento da menina.

Agradecida pela compreensão da médica, Clara estabeleceu com ela uma relação de profunda amizade e confiança.

Um dia chegou chorando à Unidade de Saúde, pediu para falar com a médica e disse a ela que iria se separar do marido. – Não é que ao chegar mais cedo em casa havia encontrado o safado na cama com uma moradora do local que ela conhecia de vista, mas não sabia o nome? Descreveu a mulher para a médica e perguntou se ela a conhecia. A médica pela descrição e sabedora de outra história, imaginou de quem se tratava, mas disse que não sabia quem era.

-Botei ela pra correr, doutora. Xinguei de tudo. Gritei pra ela e pra todo mundo ouvir que ele tem AIDS, Deus me perdoe a mentira.

A médica precisou se conter para não cair na gargalhada, e não era pelo drama que Clara estava passando. Não era.

Acontece que na véspera, outra moradora a abordara na sala de espera para perguntar se “se pegava AIDS com beijo”. Ela, já acostumada a enfrentar situações embaraçosas, cuidando para entender o que estava por trás daquela pergunta antes de prestar qualquer esclarecimento, respondeu:

-Depende. Depende do tipo de beijo, das condições da boca beijada, da pessoa beijada. Teoricamente toda vez que há troca de sangue e secreções existe a possibilidade de se contrair o vírus, se o parceiro ou parceira for portador.

A moradora continuou com ar preocupado. A médica então a chamou para uma sala reservada e perguntou:

-O que aconteceu? Você está preocupada… Está com medo de quê?

A moradora então abriu o coração:

-Doutora, sabe aquela minha irmã, Katinha, sem juízo nenhum? Pois é, se meteu com um homem casado, daqui mesmo, veja a senhora! Pior que a mulher dele está espalhando no morro que ele está com AIDS. Minha irmã disse que só beijou! Beijar na boca pega? Será que ela pegou? – disse, extremamente preocupada.

A médica, adivinhando complicação à vista, disse à moradora que sua irmã precisaria comparecer a uma consulta, para que ela pudesse orientá-la e tomar as providências cabíveis.

Dias depois, Katia, a “sem juízo”, segundo a irmã, foi à consulta e é claro, para a médica ela contou a verdade. Estava transando com o marido da outra. No dia do flagra, estava na casa do casal, na cama do casal, quando a mulher chegou. Teve que sair nua pelas ruas da comunidade, correndo da mulher que estava possessa e ameaçava esfregar a cara dela no muro de chapisco.

-Meu Deus, aquela criatura tão meiga! – pensou a médica sem, no entanto, esboçar qualquer reação.

Kátia disse que entrou na casa de outra moradora, que a socorreu e deu-lhe uma toalha com a qual ela se enrolou e subiu o morro, chegando sã e salva em casa. Estava com medo porque a mulher disse que o seu amante tinha AIDS. Chorou. Queria fazer o exame logo.

A médica, que sabia de todos os lados da história, a tranquilizou, explicou a necessidade de aguardar os três meses após o contato para fazer o exame, disse que ela podia não ter se contaminado, mas que ela precisava tomar cuidado com relações eventuais sem proteção.

Depois, sozinha, imaginando a cena, deu boas risadas da forma como as coisas se passam naquele universo, do qual ela, no exercício da sua profissão, agora fazia parte…

Por SOBRAMES – RJ

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