Olá eu sou Erika Campana, Cardiologista especialista pela SBC/AMB, mestre e doutora em Medicina pela UERJ, e presidente do DHA/Socerj 2020/21. Hoje vamos conversar sobre o polêmico artigo dos doutores Murray e Danielle Esler, publicado no Journal of Hypertension, onde os autores propõem uma hipótese sobre a interface entre a infecção por COVID-19 e o uso de alguns fármacos anti-hipertensivos.
O título do artigo é: Can angiotensin receptor-blocking drugs perhaps be harmful in the COVID-19 pandemic?
A polêmica foi iniciada por um dado observacional que chamou a atenção da comunidade cardiológica: entre os 44 mil chineses de Wuhan infectados pelo COVID19, a taxa de mortalidade foi de 2,3%, e entre os pacientes que foram a óbito a 6% eram hipertensos, 7,3% eram diabéticos; 10,2% portadores de doença cardiovascular e 10,2% eram idosos, e esses eram os fatores mais associados à maior morbidade e mortalidade. Este mesmo cenário estava presente na SARS, de 2003, e diferente do surto do H1N1 de 2009, que parecia acometer de maneira mais grave, imunodeprimidos.
É muito importante termos uma análise crítica e segura neste contexto para evitarmos comprometer o tratamento de pacientes que tem nas drogas inibidoras do sistema, renina angiotensina aldosterona, o pilar da sua proteção cardiovascular.
A existência de doença cardiovascular prévia é um dos fatores de risco para maior gravidade da infecção pelo novo coronavírus, e parte deste risco está relacionado ao fato de portadores de doenças crônicas serem mais suscetíveis, como ocorre por exemplo com a gripe por influenza vírus e as infecções por pneumococos. Entretanto, a presença da hipertensão neste contexto de risco de maior gravidade da doença do COVID-19 não seria esperada, já que em outros cenários de infecções como gripe H1N1 e pneumococos, ela não aparece como fator de risco.
A predisposição à infecção no diabetes é evidente, mas não na hipertensão. Qual foi a hipótese proposta pelos autores para esta associação?
O novo coronavírus penetra nas células do corpo humano pelo receptor da enzima ECA2, essa enzima é um homólogo da ECA1, que converte a angiotensina I em angiotensina II. A participação da ECA2 na fisiologia orgânica, e seu potencial uso terapêutico ainda é incerto. Um dos efeitos do ECA2 é o de promover a clivagem da angiotensina II em angiotensina (1–7), que pode ter efeitos benéficos no aparelho cardiovascular. Os autores sugerem que a expressão da ECA2 pode estar aumentada em células renais e cardíacas, e por tabela, nas pulmonares, e que isto poderia estar relacionado a maior infectividade e gravidade da infecção por COVID-19.
Realmente, alguns estudos experimentais em animais mostraram que lisinopril e losartan poderiam aumentar a expressão desses receptores de ECA2. Os fármacos bloqueadores dos receptores da angiotensina (BRA), geralmente aumentam a expressão de ECA2, de duas a cinco vezes. Entretanto este aumento de expressão da ECA2 ocasionado pelos BRAs, já foi demonstrado nos rins e no coração, mas não nos pulmões. E isto é fundamental para pensarmos em uma conexão entre as duas condições. Uma das possíveis explicações para o aumento da expressão de ECA2 com o uso dos BRAs estaria relacionada ao aumento das concentrações de angiotensina II com o uso dos BRAS,e esta angiotensina dois é substrato para a ECA2, portanto poderia aumentar a expressão da enzima por aumento do seu substrato.
Os efeitos de outras classes de medicamentos anti-hipertensiva são distintos, os inibidores da ECA1 e os bloqueadores beta-adrenérgicos reduzem as concentrações plasmáticas de angiotensina II, o substrato ECA2. Os bloqueadores dos canais de cálcio, são neutros quanto à disponibilidade de angiotensina II. Os diuréticos e os antagonistas dos mineralocorticóides aumentam a produção de angiotensina II, devido às perdas corporais de sódio, já que a carga de sódio reduz a expressão de ECA2. Outro aspecto relevante neste contexto é o conhecimento de que normalmente os portadores de HAS tem expressão reduzida da ECA2, o que não justificaria a sua presença como um dos fatores de risco de morte na COVID-19.
Pensando em todas estas colocações é possível que esta interrelação entre a ECA2 e o COVID-19 possibilite a hipótese de que usuários de fármacos que aumentam a expressão da ECA2, possam aumentar o potencial de infecção e a gravidade das síndromes respiratórias decorrentes do novo coronavirus? Há evidencias para pensarmos em trocar os BRAs por outros fármacos anti-hipertensivos em portadores da infecção por COVID-19? E quais os potencias malefícios da suspensão indevida destes fármacos?
Sabidamente as infecções respiratórias se complicam por quadros de coinfecção associadas. Longos períodos de intubação orotraqueal, também resultam em processos de coinfecção, e a síndrome da angústia respiratória adquirida é resultado de mecanismos multifatoriais. Entretanto, com os dados atualmente disponíveis sobre a infecção por COVID-19, que ainda está em andamento, não temos a contabilidade total da mortalidade desta doença. E, portanto, não podemos admitir de forma inconteste que o aumento da expressão de receptores da ECA2 é a causa de morte na COVID-19.
Estamos diante de uma hipótese, e não de uma evidência que mudará o modo de tratar os pacientes! E, em medicina baseada em evidencias, hipóteses precisam ser comprovadas por ensaios clínicos cegados!
Portanto, a luz dos conhecimentos atuais não é recomendado interromper o uso de BRAs ou IECAs, em portadores de COVID-19 (ou naqueles com risco potencial de contaminação), já que não há base cientifica para justificar esta conduta. E qualquer desestabilização do controle da pressão arterial na hipertensão, que poderia ocorrer com as mudanças no tratamento, acarretaria riscos não apenas hipotéticos, mas reais de complicações graves com AVC. Simplesmente descontinuar anti-hipertensivos é fortemente desencorajado e não é uma opção. E esta mesma interpretação foi adotada pelas principais sociedades medicas, incluída a Sociedade Brasileira de Cardiologia.