Método Clinico e as Doenças Cardiovasculares

Nelson Albuquerque de Souza e Silva, Gláucia Maria Moraes de Oliveira

Instituto do Coração Edson Saad – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro, RJ – Brasil 

Fonte: C@rdiologia: Prática Clínica

 

O clínico lida com o indivíduo, mas não pode se dissociar do fato de que esse indivíduo vive em um ambiente sociocultural, e no qual habita. Portanto, para tomar decisões visando a manter ou restabelecer a saúde das pessoas há necessidade de conhecer as complexas inter-relações entre os diversos sistemas fisiológicos que possibilitam manter este ser vivo, constituído a partir de sua base genética, em constante evolução e em equilíbrio com o complexo sistema socioeconômico-cultural-ambiental.

 

Para lidar com essa complexidade, há que se modificar a racionalidade médica determinística, reducionista, que vem predominando principalmente a partir da segunda metade do século XX, com base no positivismo científico.

 

Lida-se com incertezas e não com verdades absolutas. Lida-se com interconectividades, com relações não lineares e organização. Portanto, precisa-se sair do mundo das certezas para lidar com fenômenos complexos ou sistemas complexos dinâmicos adaptativos. O método clínico e o julgamento clínico com base na teoria de sistemas complexos permitem melhor compreender e atuar sobre o complexo problema das doenças cardiovasculares, e o que atualmente se denominam fatores de risco cardiovascular. Por isso há necessidade de compreendê-los dentro de uma nova racionalidade não determinística e não linear.

 

O objetivo da Medicina é a saúde e se convencionou que ela tem características das ciências e das artes. A essência da arte de curar consiste em poder voltar a produzir o que já foi produzido. O médico produz a saúde através de sua arte, ou melhor, mantém ou restabelece a saúde que já existia.

 

O conhecimento médico evoluiu ao longo do tempo, incorporou informações provindas de estudos que passaram a utilizar diversos métodos, alguns ditos “científicos”, advindos de diversas áreas de conhecimento. No último século, a prática clínica foi invadida pela incorporação de uma avalanche de novas técnicas, nem sempre validada por métodos científicos. Nem sempre essas novas técnicas trouxeram benefícios aos pacientes. O julgamento clínico, arte médica que evoluiu durante milênios e base das decisões clínicas, passou a receber críticas como sendo “não científico”, como se a observação clínica e interpretação de sinais e sintomas e também da compreensão dos resultados dos estudos científicos, se afastassem da verdade. No entanto, só o julgamento clínico permite a interpretação da realidade para se aproximar da verdade, utilizando a observação criteriosa do paciente ao longo do tempo, analisando as influências que o paciente troca com seu ambiente socioeconômico-cultural e no qual habita, e interpretando o “conhecimento científico” existente com bases hermenêuticas.

 

O médico busca restaurar o equilíbrio alterado ou manter o equilíbrio existente de um ser vivo, o ser humano, um sistema complexo dinâmico adaptativo, em permanente ou contínuo equilíbrio também com o sistema complexo do ambiente no qual habita. A teoria de sistemas complexos fornece a base teórica para o método clínico. Para analisar os dados observados podem ser utilizados modelos estocásticos, probabilísticos, não lineares ou outros métodos de análise.

 

O Método Clínico pode ser assim conceituado:

“A Clínica se consubstancia na prática à beira do leito ou em qualquer lugar que se dê o encontro médico-paciente (a pessoa que busca ajuda para um possível problema com sua saúde). O médico colhe o maior número possível de informações relevantes sobre a pessoa (considerada como um sistema complexo dinâmico adaptativo) e sua doença (um estado evolutivo da vida). Raciocina em um contexto de incerteza com base epidemiológica (o paciente e seu ecossistema) e decide sobre o diagnóstico (padrão de símbolos ou dimensões que caracterizam o estado evolutivo da vida) mais provável (limites nebulosos), escolhendo o tratamento mais adequado em função do prognóstico mais favorável”.

 

Fica claro, pelo método clínico, que para tomar decisões, sempre com base em incertezas, na tentativa de solucionar qualquer caso clínico, necessita-se percorrer todas as suas etapas, na tentativa de minimizar os erros inerentes ao processo decisório.

 

A palavra hermenêutica deriva do grego hermeneuein que significa expressar, explicar, traduzir ou interpretar. Pode assim ser conceituada como ciência ou método de interpretação que considera a prática não subordinada à teoria como simples técnica resultante da dedução de um saber teórico, sendo uma forma mais ampla de interpretação buscando o simbólico que não consegue ser expressado por técnicas puramente científicas. Saber estimar probabilidades diagnósticas, prognósticas e resultados de tratamento com bases epidemiológicas e clínicas e raciocinar, no processo de decisão clínica com base em incertezas, utilizando diversas racionalidades, incluindo decisões heurísticas, são a base do emprego do método clínico.

 

O método clínico é utilizado pela medicina ocidental há mais de 2.000 anos. Está bem sistematizado na estrutura da anamnese: identificação da pessoa, queixa principal, história da doença atual, interrogatório complementar ou revisão de sistemas, história patológica pregressa, história familiar, história social, história fisiológica, seguida do exame físico. As informações captadas são julgadas e interpretadas, influenciando e sendo influenciadas pelo ambiente, um relacionamento em constante evolução temporal ou coconstrutivismo biocultural.

 

O julgamento dos dados obtidos apenas pela anamnese e pelo exame físico em conjunto com os dados epidemiológicos permite alcançar um diagnóstico e tomar decisões terapêuticas corretas em mais de 2/3 dos casos. O “modelo científico” convencional adotado pela Medicina, principalmente ao longo da última metade do século XX, e utilizando enorme arsenal técnico é reducionista. Baseia-se na noção linear de causalidade, nega ou reduz a importância da conectividade entre os elementos, não permite incorporar valores e ainda sofre grande influência de Descartes separando corpo e mente.

 

O modelo explicativo em Medicina, baseado no positivismo científico, não é mais suficiente. A teoria de sistemas complexos surgiu para tentar explicar o funcionamento ou o comportamento de sistemas compostos por vários elementos. Os seres vivos e o ambiente são sistemas complexos. O que se denomina de “complexidade”? É a multiplicidade, interconectividade diversa e em vários níveis e o dinamismo dos eventos observáveis. Como lidar com essa complexidade? Os métodos utilizados pela “medicina baseada em evidências” trouxeram avanços no conhecimento, mas utilizam em sua grande maioria modelos lineares para relacionar variáveis, buscam-se “evidências” com uma conotação determinística de difícil aplicação, face à variabilidade dos seres vivos e seu ambiente.

 

Não se pode, em face dessa complexidade, reduzir as ações a regras que parecem simples, mas que levam a enormes erros. Definir que se deve intervir com drogas nos pacientes que apresentam níveis de colesterol ou de índice de massa corporal ou de glicemia ou de pressão arterial acima de valores fixos e cada vez menores, não parece uma atitude clínica adequada. Apenas para exemplificar essa complexidade, apresenta-se o resumo dos resultados de estudo recente6 no qual foi realizada uma meta-análise de 14 estudos de associação genética e doença coronariana, compreendendo 22.233 indivíduos com doença arterial coronariana e 64.762 indivíduos-controle de descendência europeia, seguida da genotipagem de 56.682 indivíduos com sinais de associações maiores. Essa análise identificou 13 novos loci associados com um aumento de 6% a 17% do risco de doença coronariana por alelo. Somente três dos novos loci mostraram associação significativa com os fatores de risco tradicionais.

 

Com esses dados, não há surpresa quando se observa redução da mortalidade das doenças cardiovasculares ao mesmo tempo em que fatores de risco clássicos, como o diabetes e a obesidade, aumentam de prevalência e o controle de outros fatores, como a hipertensão arterial e as dislipidemias, está longe de apresentar resultados satisfatórios. As intervenções medicamentosas em geral são feitas com drogas desenvolvidas para interferir em apenas um determinado sistema fisiológico conhecido. No entanto, apresentam também inúmeros outros efeitos (muitos indesejáveis), como são de se esperar, face à complexidade dos sistemas biológicos. Sendo assim, fica fácil entender porque não apresentam resultados brilhantes, com reduções de risco absoluto de apenas 2% a 4% em pacientes com níveis de risco abaixo de 15% em geral.

 

Leitura Recomendada

 

  • Sallis LHA, Souza e Silva NA. Medicina: quando a arte, a ciência e a tecnologia se associam para cuidar das pessoas. Rev SOCERJ. 2003;16(3):157-66.
  • Gadamer HG. O Mistério da Saúde: o cuidado da saúde e a arte da medicina. Lisboa: Edições 70; 2009.
  • Malterud K. The art and science of clinical knowledge: evidence beyond measures and numbers. Lancet. 2001;358(9279):397-400.
  • Kaneko K. Life: an introduction to complex systems biology. Berlin: Springer-Verlag; 2006.
  • Baltes PB, Reuter-Lorenz PA, Rösler F. Lifespan Development and the Brain: the perspective of biocultural co-constructivism. Cambridge: University Press; 2006.
  • Schunkert H, König IR, Kathiresan S, Reilly MP, Assimes TL, Holm H, et al; CARDIoGRAM Consortium. Large-scale association analysis identifies 13 new susceptibility loci for coronary artery disease. Nat GeNet. 2011;43(4):333-8.
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